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O Tabu do Corpo Feminino - Parte I

Vou contar-vos um episódio que aconteceu comigo:

A minha filha tinha cerca de um ano e meio quando, finalmente, tive a possibilidade de uma "nigth out". Ia, com o meu marido, jantar a casa de uns amigos. Deixei tudo preparado - não fazem ideia a logística que é necessária - para deixar a Raquel (já a dormir, pois só adormecia ao meu colo) com os meus sogros e poder ir socializar fora do circuito das "recem-mamãs". Era a minha primeira saída à noite em mais de ano e meio... Comprei roupa nova, maquilhei-me, arranjei o cabelo e lá fui super entusiasmada. Tudo corria bem durante o jantar. Estavam lá amigos de longa data e conheci outros. Até que um dos participantes, do nada, vira-se para mim e para o meu marido, em alto e bom som e diz: "Oh Sara?!... Tu estás muita gorda!!! Como é que isso aconteceu?? Oh pá... Talvez o Fernando goste! AhAhAhAh!!!!"       Não. Não estam a imaginar a minha cara... caiu-me tudo... não tive reação e só me apeteceu enterrar-me num buraco de tão envergonhada que fiquei. Aquilo apanhou-me de surpresa e nessa noite, que nunca mais esqueci, não sorri mais, não conversei mais, não me diverti mais e, embora com fome, não comi mais. Só queria ir-me embora dali e esconder-me em casa. Foi... destrutivo. 

Eu sabia que estava com peso a mais, não era preciso "esfregarem-me" isso na cara. Eu não queria pensar nisso ali e naquela ocasião. Eu não tinha ido para ser julgada. Nem para ser humilhada. Eu só queria descontrair um pouco, entre "amigos" depois de meses sem dormir uma única noite inteira, sem ter de comer à pressa com a filha ao colo e poder falar de outras coisas que nada tivessem haver com maternidade. A pessoa em questão não faz ideia do quanto me magoou. Nunca mais a vi. Fiz questão disso. Mas, posso dizer que aquele comentário "perseguiu-me" durante algum tempo e fez com que a pouca auto-estima que tinha na altura fosse pelo ralo. Durante esse tempo, desisti de mim e ainda hoje pago essa factura. 

E vocês perguntam: O que isto tem haver com a Dança?!... E eu digo: tem muito. Aliás, tem tudo.

Pela minha experiência, o principal motivo para muitas mulheres não começarem a praticar Dança Oriental é porque acham que não têm corpo para tal. Esta é a grande verdade. Ou se acham gordas, ou se acham demasiado magras, ou dizem que têm barriga, ou são musculadas demais, ou têm esterias, celulite e desculpam-se com a famosa "eu não tenho jeito para dançar". Secretamente querem muito, mas abandonam logo da ideia porque estão tão feridas por dentro, por tantos comentários que já devem ter ouvido, que desistiram delas próprias. E, só quando aconteceu comigo é que percebi.

A sociedade esmaga o corpo feminino. Nós esmagamo-nos a nós próprias com tanto idealismo utópico. Nunca achamos que estamos bem. Não conheço nenhuma mulher que se olhe e diga: estou ótima. Nenhuma. E eu lido e sempre lidei com MUITAS mulheres. Mesmo quando estava mais magra tinha sempre a perceção que estava gorda. Mesmo quando tinha a barriga "no sítio" achava que era demais e tinha vergonha de a mostrar. Mesmo quando estava no auge físico achava que não tinha o perfil adequado. Nunca é suficiente. Os nossos mais chegados acham que têm o direito e o à vontade para opinar sem ser-lhes pedido.  Deixamos que nos insultem e nos julguem por causa da nossa imagem e interiorizamos que nunca estamos "bem" desde tenra idade. Calamo-nos e aceitamos que a culpa é nossa. Vivemos envergonhadas. Daí, ao acharmos que não servimos para quase nada, inclusive para dançar, é um passo.

Claro, que queremos estar (sempre) no nosso melhor. Tentamos e devemos procurar esse melhor. Mas agora pergunto: o que é o nosso melhor?... quem define esse melhor? Eu ou a sociedade? Não podemos ser, simplesmente?...

Nós mulheres, passamos por várias fases, com muitas variações ao longo da vida. Os homens também. Não somos robots. Mas o julgamento nas mulheres "it`s overwhelming" e cruel. Neste momento, estou com peso a mais, com a barriga por definir, os braços por trabalhar. Seria hipócrita se dissesse que não queria emagrecer e definir mais o corpo. Claro que quero. Sou vaidosa e orgulhosa. A grande diferença do meu agora em relação a uns anos atrás, é que não deixo que a minha percepção de imagem interfira no meu agir. Muito menos deixo que os comentários, que não pedi e os que peço, me firam de morte e afectem na minha autoestima. 

E estão a pensar: Oh Sara, não foi exagero teu teres ficado tão afectada com a observação? 

NÃO. Isso foi o que também pensei ao início. Que a pessoa só estava a ser engraçada... para não ligar... para não exagerar... Não bastou ter levado com aquilo como teria de desculpar a acção e culpabilizar-me mais uma vez. Acreditem que nunca mais me apanharam de surpresa. Ninguém tem o direito de criticar a imagem do outro, seja em que situação for. Sei que vamos sempre fazê-lo, faz parte da nossa condição humana, mas não tenho de verbalizar (saber estar calado é uma virtude), preconceitualizar ( acho que inventei esta palavra) e muito menos usar como arma. E nós não temos de aceitar e calar mesmo que venha dos nossos "amigos" e familiares, que grande parte das vezes são os piores. Eu assumo os meus cabelos brancos, porque quero. Assumo que deixei de ter paciência para estar sempre maquilhada. Estou num momento que prefiro roupa confortável e ténis. E sim, estou com o corpo que estou. Um corpo que dança, anda, serve, funciona e só pede compaixão. Respeito. Este é um legado que quero passar à minha filha. Porque sim, tenho uma menina e quero que cresça sem vergonha de ser ela.

Nota para reflexão: também pela minha experiência de bailarina, professora e de uma espectadora que já viu milhares de actuações dos mais variantes estilos, afirmo que, uma boa performance supera SEMPRE a imagem do corpo. E é esse o objectivo de um bailarino, encantar com a sua dança e não (só) com o seu corpo. 



Comentários

  1. Parabéns pela coragem de partilhar estes sentimentos e pensamentos. Comungo das suas observações sobre a sociedade à qual pertencemos e da qual somos o resultado. A dança oriental ajuda a colocar tudo no devido lugar, qualquer um pode dançar, desde que aprenda a técnica e se entregue sem pudor. Obrigada Sara. Sou aluna da Catarina Branco.

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    1. Grata eu pelo seu feedback. Sim. A Dança Oriental está a emponderar mulheres. Continue com as aulas! A Catarina é excelente!!!

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